Embora continuemos a constatar a quase total
inexistência de reflexão crítica sobre este tema em Portugal, temos vindo a
observar o desenvolvimento que ela tem tido noutros países como a Inglaterra,
Canadá, Brasil, América do Norte, Austrália, para referir apenas alguns
exemplos.
Com estas notas, não pretendemos ser
exaustivos, mas apenas enunciar alguns tópicos de reflexão que consideramos
pertinentes para o desenvolvimento de acções de Recriação Histórica e de História
Viva assentes numa metodologia científica com propósitos concretos a cumprir.
Este conceito, como é sabido, assenta no
recurso ao drama, em que determinadas personagens, criteriosamente escolhidas
de acordo com o assunto a explorar, transmitem conhecimento sobre determinados
factos históricos, integrando-os no seu contexto, de forma a aproximar os
públicos da história, das artes, da cultura, através de laços emocionais que
potenciam o conhecimento e a aprendizagem.
A
História Viva é uma forma de reconstituição da História partindo dos fragmentos
que nos chegaram, como textos, imagens, objectos, monumentos, redotando-os de
vida. É nesse sentido que se reinventa ou se recria, quando se lhes imprime
vida, quando se juntam e interpretam as peças originais que perduraram até aos
nossos dias. Assim, aquilo a que chamamos História Viva passa inevitavelmente
pelo processo de recriação.
“Recriar” é criar de novo. Neste caso, mediante
um estudo atento do passado, sob o olhar crítico do presente. Não se trata de
reconstituir, uma vez que raramente possuímos dados suficientes que nos
permitam repor ou refazer com exctidão acontecimentos passados. Também não
devemos confundir “recriação” com “recreação” no sentido de diversão apenas,
embora esta possa estar implícita nestas acções, mas não sempre. Nem é esse o
seu objectivo primeiro.
O foco principal da História Viva e da
Recriação Histórica, desde os seus primeiros passos nos anos de 1970, em
Inglaterra, foi e é a transmissão de conhecimento – educar. Trata-se de uma estratégia
que pressupõe um diálogo constante entre a Cultura e a Educação. Diríamos, do
âmbito da Educultura.
Acontece que a Educação e a Cultura em
Portugal têm sobrevivido sistematicamente de costas viradas uma para a outra,
e, talvez por isso, nunca tenha havido um olhar científico sobre esta matéria nas
áreas da museologia e do património cultural, onde a educação tem ocupado um
lugar secundário.
Desde que o conceito foi introduzido em
Portugal, pela Associação Portuguesa de Museologia, houve um proliferar de
recriações históricas – as chamadas feiras medievais - no âmbito do turismo
cultural, que consistem, em muitos casos, em acções recreativas sem rigor histórico-científico
algum. Saliento que, nestes casos, o propósito primeiro desta estratégia – a
educação – extinguiu-se completamente. Elas podem ser consideradas um sucesso
ao nível do turismo de massas, e são-no, mas não servem, na maioria dos casos,
a cultura e muito menos a educação. Assim, esses eventos, não se enquadram no
âmbito da História Viva, por não transmitirem conhecimento científico sobre
factos históricos. Este fenómeno de masssas levou alguns autores a referirem-se
a disneylização da cultura e da
história, no sector do turismo cultural e patrimonial.
Outro objectivo essencial da História Viva é
salientar, dar a conhecer, interpretar e divulgar o património histórico e
artístico, o que também não acontece em muitas destas feiras a que chamam “medievais”.
Acontece sim o ocultar do património com estruturas que muitas vezes ofuscam a
visão do monumento ou praça histórica onde se realizam.
Defendemos que qualquer acção ou evento que
se concretize num espaço dotado de herança histórica deve ter como princípio
pôr em relevo esse legado. Para além das referidas feiras, ocorrem eventos de
teatro e de música, por exemplo, cujas estruturas desvirtuam ou ocultam o
legado histórico. Se não é estabelecida uma relação e o devido enquadramento
entre o espectáculo e o património onde se realiza, este perde todo o sentido e
serve o propósito que qualquer auditório ou sala de espectáculos serviria. Porquê apresentar-se ali? Não nos parece que seja esse o nosso papel enquanto
agentes culturais na área da museologia e do património. Não queremos com isto
defender que não se devam apresentar espectáculos de música e de teatro em
espaços históricos, muito pelo contrário, consideramos que as artes de ontem e
de hoje devem manter-se em constante diálogo, sem que se sobreponham, mas que
se complementem.
A História Viva é uma estratégia cultural e educativa, entre outras,
que recorre à investigação e ao levantamento de memórias de modo a que a
recriação se pratique com rigor, tanto no que respeita aos factos
histórico-artísticos como à contextualização do espaço onde se concretiza. Isto
pressupõe um trabalho persistente e atento.
Ao
propormo-nos interpretar as obras de arte, devemos sublinhar o seu pulsar e
despertar consciências e emoções sem os quais a descoberta, o conhecimento e a
necessidade de preservar as memórias não será possível. Nessa tradução daquilo
que é expressão e cultura humana, destaca-se o estabelecimento de uma relação
de afecto com o objecto artístico. A recriação histórica cria estímulos para o
conhecimento – é um apelo, o despoletar de emoções para com a Arte, a História
e o Património tangível e intangível. Requer-se, em todo este processo, uma
transmissão de emoções de um modo circular: da obra para o actor/mediador;
deste para o público e do público para a obra.
A
História Viva, como processo de comunicação, só é consistente partindo de um
trabalho rigoroso de identificação, investigação, dinamização e divulgação, de
modo a despertar consciências e a estimular o apreço pelas nossas heranças
culturais, sensibilizando as populações e os públicos para a conservação e
protecção do que é seu. Trata-se de um meio de educação e enriquecimento cultural,
através da acção, em que se revive o passado histórico.
Tratando-se de um método que recorre ao drama para transmitir
conhecimentos sobre determinado facto histórico, obra de arte, lugar de memória,
objecto de uso quotidiano, hábitos e costumes de uma época passada, vestuário,
etc., torna-se fundamental uma “leitura” minuciosa através das imagens
representativas da realidade que se pretende conhecer e transmitir.
É
evidente que os textos, tanto documentos originais como estudos sobre a época
em foco, são fundamentais para a realização do trabalho de recriação histórica,
mas a observação atenta das pinturas, esculturas, iluminuras, painéis de
azulejos, etc., oferecem-nos a informação primordial para a reconstituição do
vestuário, dos gestos, das expressões, dos objectos de uso quotidiano,
possibilitando-nos dar vida a tempos passados.
A
História Viva pode apoiar-se em dois tipos distintos de recriação que me parece
importante sublinhar: 1) a recriação de ofícios e actividades quotidianas do
passado; 2) a recriação de personagens que representam uma época, cujo guião
vai desvendando o legado que se pretende comunicar e interpretar.
No
primeiro caso, integra pessoas que estudaram e conhecem a fundo determinados
ofícios (ou outras actividades) que eram praticados num dado período:
ferreiros, tanoeiros, copistas, etc. Habitualmente estes não são actores, mas
vestem-se a rigor de acordo com a época em foco e representam, demonstrando
como se fazia, incluindo réplicas dos instrumentos outrora utilizados. No
segundo caso, o trabalho é realizado por actores/mediadores que seguem um guião
elaborado a partir de documentos e estudos sobre a época e o património
histórico que se pretende dar a conhecer. Muitas vezes as suas falas são
excertos de textos da época que estão intrinsecamente relacionados com o espaço
ou com o contexto em foco.
São
duas possibilidades de recriação muito distintas que permitem vivências e conhecimentos
sobre uma dada época e que podem coabitar numa mesma acção de História Viva ou
pôr-se em prática isoladamente.
Considero
que o recurso ao drama e ao trabalho do actor se torna mais versátil por poder
integrar-se em qualquer contexto e explorar qualquer tema: uma iluminura, um
texto, um poeta, uma fonte, tudo pode fazer parte de um guião que um actor/mediador
interprete desvelando a sua história e o contexto em que se produziu.
É de salientar que, em História
Viva, o protagonismo centra-se no património histórico e não no objecto
dramático. A interpretação do actor é fundamental para a boa comunicação do
legado que temos em mãos, e o seu trabalho não é fácil, parecendo muitas vezes
que improvisa, mas com base em guiões solidamente estruturados de modo a que não
se demita do rigor histórico que lhe é exigido. Os guiões para as recriações
históricas são muito diversos dos guiões do teatro de palco; devem condensar a
informação essencial em textos que não deverão ser demasiado extensos nem muito
exaustivos. Por outro lado é essencial que os discursos sejam perceptíveis pelo
visitante comum, ou, quando a acção se destina a públicos pré-definidos (ex.: estudantes)
que partam dos Programas escolares, mas que acrescentem informação àquela a que
estes têm acesso em sala de aula. Quando os guiões se destinam ao público em
geral, as dificuldades acrescem por se tratar habitualmente de grupos muito
heterogéneos, tanto no que concerne os níveis etários como culturais. Aqui
podem encontrar-se pais com filhos em idade pré-escolar, que procuram a
componente lúdica associada ao conhecimento, mas também visitantes jovens e
adultos que pretendem conhecer a história e as histórias sobre o objecto ou
lugar que acolhe a acção. Os aspectos lúdico e didáctico devem convergir em
harmonia através do guião e pelo trabalho empenhado do actor que interpreta e
comunica, motivando os mais novos para a aprendizagem (e para que venham a ser
frequentadores destes espaços culturais), ao mesmo tempo que transmite os
conhecimentos que procuram os públicos jovens e adultos.
É através das emoções e dos afectos que as
personagens captam a motivação primordial para a transmissão dos conhecimentos
aos vários públicos. O recurso ao drama potencia a aprendizagem, humanizando espaços e peças muitas vezes difíceis de
decifrar. O público vai-se envolvendo emocionalmente na construção do
conhecimento, tornando-se agente crítico da sua representação e da sua relação
com a vida.
A História Viva é uma estratégia de
descoberta activa que abrange várias áreas do conhecimento e que parte de um
trabalho científico que engloba, à partida, a história, as artes, a literatura,
as línguas, a sociologia, a psicologia, visando o envolvimento humanista e
humanizante do indivíduo.
Raquel Alves Coelho
Massamá, 12 de Outubro de 2015
Texto escrito no âmbito da participação
da Sons & Ecos, Lda. no Festival 6 Continentes – 2015.
Visita
Encenada no Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras, 2015
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A Sons & Ecos participa no Festiva 6 Continentes 2015, a decorrer nos dias 17 e 18 de Outubro. |