sábado, 17 de outubro de 2015

Notas para uma reflexão crítica sobre Recriação Histórica e História Viva

   Embora continuemos a constatar a quase total inexistência de reflexão crítica sobre este tema em Portugal, temos vindo a observar o desenvolvimento que ela tem tido noutros países como a Inglaterra, Canadá, Brasil, América do Norte, Austrália, para referir apenas alguns exemplos.
   Com estas notas, não pretendemos ser exaustivos, mas apenas enunciar alguns tópicos de reflexão que consideramos pertinentes para o desenvolvimento de acções de Recriação Histórica e de História Viva assentes numa metodologia científica com propósitos concretos a cumprir.
   Este conceito, como é sabido, assenta no recurso ao drama, em que determinadas personagens, criteriosamente escolhidas de acordo com o assunto a explorar, transmitem conhecimento sobre determinados factos históricos, integrando-os no seu contexto, de forma a aproximar os públicos da história, das artes, da cultura, através de laços emocionais que potenciam o conhecimento e a aprendizagem.
   A História Viva é uma forma de reconstituição da História partindo dos fragmentos que nos chegaram, como textos, imagens, objectos, monumentos, redotando-os de vida. É nesse sentido que se reinventa ou se recria, quando se lhes imprime vida, quando se juntam e interpretam as peças originais que perduraram até aos nossos dias. Assim, aquilo a que chamamos História Viva passa inevitavelmente pelo processo de recriação.
   “Recriar” é criar de novo. Neste caso, mediante um estudo atento do passado, sob o olhar crítico do presente. Não se trata de reconstituir, uma vez que raramente possuímos dados suficientes que nos permitam repor ou refazer com exctidão acontecimentos passados. Também não devemos confundir “recriação” com “recreação” no sentido de diversão apenas, embora esta possa estar implícita nestas acções, mas não sempre. Nem é esse o seu objectivo primeiro.
   O foco principal da História Viva e da Recriação Histórica, desde os seus primeiros passos nos anos de 1970, em Inglaterra, foi e é a transmissão de conhecimento – educar. Trata-se de uma estratégia que pressupõe um diálogo constante entre a Cultura e a Educação. Diríamos, do âmbito da Educultura.
   Acontece que a Educação e a Cultura em Portugal têm sobrevivido sistematicamente de costas viradas uma para a outra, e, talvez por isso, nunca tenha havido um olhar científico sobre esta matéria nas áreas da museologia e do património cultural, onde a educação tem ocupado um lugar secundário.
   Desde que o conceito foi introduzido em Portugal, pela Associação Portuguesa de Museologia, houve um proliferar de recriações históricas – as chamadas feiras medievais - no âmbito do turismo cultural, que consistem, em muitos casos, em acções recreativas sem rigor histórico-científico algum. Saliento que, nestes casos, o propósito primeiro desta estratégia – a educação – extinguiu-se completamente. Elas podem ser consideradas um sucesso ao nível do turismo de massas, e são-no, mas não servem, na maioria dos casos, a cultura e muito menos a educação. Assim, esses eventos, não se enquadram no âmbito da História Viva, por não transmitirem conhecimento científico sobre factos históricos. Este fenómeno de masssas levou alguns autores a referirem-se a disneylização da cultura e da história, no sector do turismo cultural e patrimonial.
   Outro objectivo essencial da História Viva é salientar, dar a conhecer, interpretar e divulgar o património histórico e artístico, o que também não acontece em muitas destas feiras a que chamam “medievais”. Acontece sim o ocultar do património com estruturas que muitas vezes ofuscam a visão do monumento ou praça histórica onde se realizam.
   Defendemos que qualquer acção ou evento que se concretize num espaço dotado de herança histórica deve ter como princípio pôr em relevo esse legado. Para além das referidas feiras, ocorrem eventos de teatro e de música, por exemplo, cujas estruturas desvirtuam ou ocultam o legado histórico. Se não é estabelecida uma relação e o devido enquadramento entre o espectáculo e o património onde se realiza, este perde todo o sentido e serve o propósito que qualquer auditório ou sala de espectáculos serviria. Porquê apresentar-se ali? Não nos parece que seja esse o nosso papel enquanto agentes culturais na área da museologia e do património. Não queremos com isto defender que não se devam apresentar espectáculos de música e de teatro em espaços históricos, muito pelo contrário, consideramos que as artes de ontem e de hoje devem manter-se em constante diálogo, sem que se sobreponham, mas que se complementem.
   A História Viva é uma estratégia cultural e educativa, entre outras, que recorre à investigação e ao levantamento de memórias de modo a que a recriação se pratique com rigor, tanto no que respeita aos factos histórico-artísticos como à contextualização do espaço onde se concretiza. Isto pressupõe um trabalho persistente e atento.
   Ao propormo-nos interpretar as obras de arte, devemos sublinhar o seu pulsar e despertar consciências e emoções sem os quais a descoberta, o conhecimento e a necessidade de preservar as memórias não será possível. Nessa tradução daquilo que é expressão e cultura humana, destaca-se o estabelecimento de uma relação de afecto com o objecto artístico. A recriação histórica cria estímulos para o conhecimento – é um apelo, o despoletar de emoções para com a Arte, a História e o Património tangível e intangível. Requer-se, em todo este processo, uma transmissão de emoções de um modo circular: da obra para o actor/mediador; deste para o público e do público para a obra.  
   A História Viva, como processo de comunicação, só é consistente partindo de um trabalho rigoroso de identificação, investigação, dinamização e divulgação, de modo a despertar consciências e a estimular o apreço pelas nossas heranças culturais, sensibilizando as populações e os públicos para a conservação e protecção do que é seu. Trata-se de um meio de educação e enriquecimento cultural, através da acção, em que se revive o passado histórico.
   Tratando-se de um método que recorre ao drama para transmitir conhecimentos sobre determinado facto histórico, obra de arte, lugar de memória, objecto de uso quotidiano, hábitos e costumes de uma época passada, vestuário, etc., torna-se fundamental uma “leitura” minuciosa através das imagens representativas da realidade que se pretende conhecer e transmitir.
   É evidente que os textos, tanto documentos originais como estudos sobre a época em foco, são fundamentais para a realização do trabalho de recriação histórica, mas a observação atenta das pinturas, esculturas, iluminuras, painéis de azulejos, etc., oferecem-nos a informação primordial para a reconstituição do vestuário, dos gestos, das expressões, dos objectos de uso quotidiano, possibilitando-nos dar vida a tempos passados.
   A História Viva pode apoiar-se em dois tipos distintos de recriação que me parece importante sublinhar: 1) a recriação de ofícios e actividades quotidianas do passado; 2) a recriação de personagens que representam uma época, cujo guião vai desvendando o legado que se pretende comunicar e interpretar.
   No primeiro caso, integra pessoas que estudaram e conhecem a fundo determinados ofícios (ou outras actividades) que eram praticados num dado período: ferreiros, tanoeiros, copistas, etc. Habitualmente estes não são actores, mas vestem-se a rigor de acordo com a época em foco e representam, demonstrando como se fazia, incluindo réplicas dos instrumentos outrora utilizados. No segundo caso, o trabalho é realizado por actores/mediadores que seguem um guião elaborado a partir de documentos e estudos sobre a época e o património histórico que se pretende dar a conhecer. Muitas vezes as suas falas são excertos de textos da época que estão intrinsecamente relacionados com o espaço ou com o contexto em foco.
   São duas possibilidades de recriação muito distintas que permitem vivências e conhecimentos sobre uma dada época e que podem coabitar numa mesma acção de História Viva ou pôr-se em prática isoladamente.
   Considero que o recurso ao drama e ao trabalho do actor se torna mais versátil por poder integrar-se em qualquer contexto e explorar qualquer tema: uma iluminura, um texto, um poeta, uma fonte, tudo pode fazer parte de um guião que um actor/mediador interprete desvelando a sua história e o contexto em que se produziu.
   É de salientar que, em História Viva, o protagonismo centra-se no património histórico e não no objecto dramático. A interpretação do actor é fundamental para a boa comunicação do legado que temos em mãos, e o seu trabalho não é fácil, parecendo muitas vezes que improvisa, mas com base em guiões solidamente estruturados de modo a que não se demita do rigor histórico que lhe é exigido. Os guiões para as recriações históricas são muito diversos dos guiões do teatro de palco; devem condensar a informação essencial em textos que não deverão ser demasiado extensos nem muito exaustivos. Por outro lado é essencial que os discursos sejam perceptíveis pelo visitante comum, ou, quando a acção se destina a públicos pré-definidos (ex.: estudantes) que partam dos Programas escolares, mas que acrescentem informação àquela a que estes têm acesso em sala de aula. Quando os guiões se destinam ao público em geral, as dificuldades acrescem por se tratar habitualmente de grupos muito heterogéneos, tanto no que concerne os níveis etários como culturais. Aqui podem encontrar-se pais com filhos em idade pré-escolar, que procuram a componente lúdica associada ao conhecimento, mas também visitantes jovens e adultos que pretendem conhecer a história e as histórias sobre o objecto ou lugar que acolhe a acção. Os aspectos lúdico e didáctico devem convergir em harmonia através do guião e pelo trabalho empenhado do actor que interpreta e comunica, motivando os mais novos para a aprendizagem (e para que venham a ser frequentadores destes espaços culturais), ao mesmo tempo que transmite os conhecimentos que procuram os públicos jovens e adultos.
   É através das emoções e dos afectos que as personagens captam a motivação primordial para a transmissão dos conhecimentos aos vários públicos. O recurso ao drama potencia a aprendizagem, humanizando  espaços e peças muitas vezes difíceis de decifrar. O público vai-se envolvendo emocionalmente na construção do conhecimento, tornando-se agente crítico da sua representação e da sua relação com a vida.
   A História Viva é uma estratégia de descoberta activa que abrange várias áreas do conhecimento e que parte de um trabalho científico que engloba, à partida, a história, as artes, a literatura, as línguas, a sociologia, a psicologia, visando o envolvimento humanista e humanizante do indivíduo.



Raquel Alves Coelho
Massamá, 12 de Outubro de 2015
Texto escrito no âmbito da participação da Sons & Ecos, Lda. no Festival 6 Continentes – 2015.

Visita Encenada no Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras, 2015

A Sons & Ecos participa no Festiva 6 Continentes 2015, a decorrer nos dias 17 e 18 de Outubro.

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